quinta-feira, 22 de junho de 2017

Transparência versus Corrupção

Convidada pela Associação Sindical dos Magistrados Judiciais Guineenses (ASMAGUI), fiz-me presente como participante e moderadora no Seminário Internacional “Corrupção e Fragilidade das Instituições Políticas e Judiciais”, realizado no passado dia 15 e 16, em Bissau, onde aproveitei para juntar a minha voz, explanar sucintamente a minha visão relativamente ao fenómeno da corrupção na Guiné-Bissau, numa tentativa de enriquecer e subsidiar os conteúdos temáticos abordados, essencialmente, responder ao repto a “Renovação do Compromisso Ético”.

No Seminário, muito bem organizado, participaram juristas de alto gabarito: juízes vindos de fora, do Brasil, de Moçambique e de Portugal; os nossos magistrados; advogados; conselheiros jurídicos; e, como uma cereja em cima do chantili, ou melhor, ‘quil sal cu ta da bianda gustu’, o nosso constitucionalista, o Professor Doutor Emílio Kafft Kosta.

Todavia, porque me soube a pouco, trago aqui à colação outros dados fantasmagóricos sobre o fenómeno corrupção: reportando-o à presente crise político-institucional; algumas pinceladas da sua ramificação no seio do poder judicial; e, claro, indicando os atalhos que perfilho para a redução do fenómeno no nosso país.

Ainda moça, nesta cidade, assistia ao germinar da corrupção no seio do Estado de partido-único. Quando, no centralismo democrático e na economia centralizada, dignatários estatais e sua entourage se apropriavam de bens do coletivo e jogavam cartas elevadas já visíveis aos meus olhos juvenis. Era uma corrida a contrarrelógio para ter um pé na Comissão de Confisco e adquirir/apropriar, por uma bagatela, a propriedade imobiliária desta cidade. Para determinados chefes, tudo valia para o enriquecimento indevido, conveniente à assunção do novo status de herdeiros da urbanidade conquistada a sangue no mato. Guerra que ainda subsiste entre uns poucos de vivos. Era prenderem-se entre eles, com altos dirigentes a cumprirem pena na prisão de Brá por desvios de bens públicos. Era o Chefe a distribuir benesses subtraídas ao erário publico aos seus fiéis. Era escamotear esses novos bens em nome de filhos ou outros familiares. Eram testas de ferro nas operações ilícitas. Era ver quem beneficiava e o que se poderia tirar da Cooperação. Era, inclusive, corromper o espírito e as almas das senhoritas, para ver quem ficava com a mais apetecível. Alguns de nós, muito jovens, assistimos ao cultivo da raiz da corrupção do e no Estado, aquela que ainda hoje e cada vez mais nos assola. 

Entretanto, meados dos anos 80, com o Estado na banca rota, chegam em socorro as instituições de Bretton Woods (FMI e Banco Mundial), com o «Reajustamento Estrutural» e a «liberalização económica», melhor denominada de selvagem. Os titulares do poder assumem a autoria do capitalismo na sua vertente neoliberal. Travestem-se, formam e formatam comerciantes da política e seus descendentes que, podendo, necessariamente, viriam a assaltar o poder. Criam empresas de capitais mistos (nacional e estrangeiro), onde figuram nomes de filhos e comadres, com subvenções dadas à cabeça pelo investidor estrangeiro. Vêm as luvas, as % ‘s de comissão e o «sucu di bás». Outros, para sobreviver, para arranjar alguma liquidez, tinha que ser ‘coloca li, coloca lá’, ou então, fazer plantão nas portas das Finanças Públicas munidos de ‘títulos’ forjados. Tudo se privatizou, num adeus ad eterno às maiores empresas públicas. Tudo se tornou alienável, até a moral e a ética. Estava-se a preparar a época seguinte: liberalização politica. Lançava-se o rastilho da guerra civil na cidade, centro privilegiado da corrupção do Estado, com o tráfico de armas para os independentistas de Casamança, fruto de um Relatório Parlamentar que, tipicamente, nunca chegou a conhecer a luz do dia.

A força que o fenómeno da corrupção adquire no Estado e na sociedade acaba por tornar o país aliciante para pessoas e organizações criminosas estrangeiras, atraídas para este porto seguro, onde, efetivamente, com uns trocos, se podia obter o desejado respaldo nas lideranças do Estado. Entre outros dados, a prova evidente é que, nesta cidade, a cocaína teve honras de guarda no Tesouro Público. Tudo numa transversalidade na qual o senso comum, o societário e as próprias instituições estatais, inclusive as que deveriam velar pela aplicação da lei, premeiam o criminoso, sendo este visto como o mais esperto, numa perspetiva de ‘djireça’ e de ‘matchundadi’. Eis o paradigma!

Uma nova esperança despontava das eleições gerais de 2014. Ainda que a Guiné-Bissau se classificasse na 163.ª posição, no índice da Transparência Internacional de 2013, o 12. ° país a nível mundial com mais corrupção…

Porém, logo no início da XIX legislatura, em menos de um ano de governação, o Presidente da República, em discurso oficial, aponta o dedo ao Governo e denuncia alguns dos seus membros como indiciados em corrupção. O Governo riposta com os dólares angolanos, omitidos durante a campanha presidencial; e defende-se invocando perseguição politica: que esses atos, a terem sido cometidos, faziam parte do passado dos governantes. Ninguém se demite ou é demitido. Apesar de se ter anunciado um debate sobre a Justiça, este nunca veio a realizar-se. Entretanto, alguns dos seus membros são chamados pela tutela penal e um outro preso, todos na suspeição frequente de situações de apropriação e utilização de bens e recursos financeiros públicos para seu benefício privado. Para, então, no seio do Governo, surgir quem publicamente defendesse: «Quem não é corrupto?». Pois, nestes termos é verdade: «Anós tudu i kuruptu». Uns porque corrompem, outros porque são corrompidos, e outros ainda porque toleramos este estado de coisas.

Aqui estamos! No vermelho do índice de transparência e da não prestação de contas. Começou pela não apresentação de declaração de rendimentos e do património, por parte de muitos titulares de cargos públicos; vieram as acusações mútuas de desvios do FUNPI; veio o resgate bancário; veio o buraco no Desporto… Como se não soubéssemos da proliferação, no seio da administração, da utilização de documentos fraudulentos em concursos públicos, nas adjudicações diretas, nas obras públicas, pela autoridade tributária, pelas autoridades policiais, na área da saúde, na área da educação, etc.

Ademais, mas não de somenos importância, a problemática dos conflitos de interesse concorre para o potencial da corrupção e da falta de transparência. Há quem, violando sistematicamente as normas das incompatibilidades de funções, apesar de ser titular de um já por si não acumulável cargo político (deputado, membro do governo, conselheiro, etc.), não repugna ser também comerciante. E lá vão todos para a campanha do cucu!

É evidente que sem vontade política a nível institucional no sentido do combate efetivo contra a corrupção e a implementação de uma política de transparência nas atividades públicas, as instituições formalmente criadas e vocacionadas para o efeito (Tribunal de Contas, Inspeção Superior de Contra a Corrupção, o Gabinete de Luta contra a Corrupção e os Delitos Económicos da PGR, a Brigada de Delitos Económicos da PJ, o CENTIF – Célula Nacional de Tratamento de Informações Financeiras da Guiné-Bissau – e a UTC – Unidade Transnacional contra a Criminalidade) continuarão inativas e não passarão de uma mera miragem.

E quanto ao nosso poder judicial? 

A falta de transparência é diagnosticada ciclicamente no interior das instituições judiciárias encarregadas de prevenir e combater a criminalidade. Assustámo-nos quando, pela primeira vez, um Presidente da República denunciou o fenómeno de corrupção nas atividades judiciais. Com estes sintomas, nesta legislatura, face à crise político-institucional, ora hoje um Acórdão e outro amanhã, ora denúncias de viva voz dos próprios magistrados da ‘politização da justiça’ aquando das eleições no STJ. Não nos fazendo de esquecidos que outrora, era o PR que indicava o Presidente do STJ. Extinto o vínculo, em 2008, preferia-se ofertar aos magistrados viaturas novas e de alta cilindrada.

A salvação do poder judicial da sua promiscuidade com o político, da falta de transparência e da corrupção no seu seio, só poderá acontecer através do associativismo e não do corporativismo, numa junção de esforços e de coragem para duas ações, apenas: 

Primeiro, recuperar a credibilidade do sistema de justiça, funcionalizando a transparência junto aos Conselhos Superiores de Magistratura, designadamente através do compromisso que nesse sentido consta da «Carta de Ética dos juízes guineenses», com uma gestão idónea, com a prestação de contas e com a responsabilização. Para isso: auditar o Cofre Geral dos Tribunais e criar mecanismo de controlo interno e externo; apresentar relatórios anuais; realizar inspeções judiciais e publicá-las; fazer uma gestão mais racional dos fracos recursos disponibilizados pelo Estado para o funcionamento da Justiça.

Em segundo, seria pôr freio às apetências do poder político no sistema judicial. Sinal claro seria o normal funcionamento da Magistratura do Ministério Público, retirando-a dessas amarras, extinguindo o vínculo de comando. Para que o MP deixe de ser o parente pobre do sistema e para que a sua chefia tenha legitimidade própria, perfil, competência, duração de mandato e seja idoneamente responsável pela tutela penal. Talvez assim se deixasse de investigar aquilo que se quer, a quem se quer, quando se quer, e com suspeições de uma tendenciosa orientação política. Assim como, outro sinal imediato, consistiria em resgatar o Tribunal de Contas das mãos da mesma subordinação.

Sabemos que a corrupção continuará a assolar o mundo e a pesar acerrimamente no potencial de desenvolvimento de África, mas também há bons exemplos, de países que conseguiram erradicar essa prática ou reduzi-la para níveis insignificantes. A experiência mostra-nos que a transparência é um fator indissociável de uma luta anticorrupção eficaz. A corrupção começou por minar a confiança entre nós, a unidade nacional em torno do progresso, alastrou e conduziu-nos à guerra, aos insaciáveis e fratricidas apetites que tornam o país ingovernável, induziu a dissolução da autoridade do Estado e o descrédito cada vez mais agudo das instituições. É como um cancro que rói a sociedade guineense, um rolo compressor que nos esmaga sob a capa da tolerância cada vez maior a que somos obrigados, para com a normalização de comportamentos manifestamente intoleráveis, que tomaram conta das mais altas instâncias deste país. Quando julgávamos que já tínhamos batido no fundo do buraco, descobrimos sempre que ainda se pode descer mais baixo. Até quando?

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