quinta-feira, 22 de junho de 2017

Transparência versus Corrupção

Convidada pela Associação Sindical dos Magistrados Judiciais Guineenses (ASMAGUI), fiz-me presente como participante e moderadora no Seminário Internacional “Corrupção e Fragilidade das Instituições Políticas e Judiciais”, realizado no passado dia 15 e 16, em Bissau, onde aproveitei para juntar a minha voz, explanar sucintamente a minha visão relativamente ao fenómeno da corrupção na Guiné-Bissau, numa tentativa de enriquecer e subsidiar os conteúdos temáticos abordados, essencialmente, responder ao repto a “Renovação do Compromisso Ético”.

No Seminário, muito bem organizado, participaram juristas de alto gabarito: juízes vindos de fora, do Brasil, de Moçambique e de Portugal; os nossos magistrados; advogados; conselheiros jurídicos; e, como uma cereja em cima do chantili, ou melhor, ‘quil sal cu ta da bianda gustu’, o nosso constitucionalista, o Professor Doutor Emílio Kafft Kosta.

Todavia, porque me soube a pouco, trago aqui à colação outros dados fantasmagóricos sobre o fenómeno corrupção: reportando-o à presente crise político-institucional; algumas pinceladas da sua ramificação no seio do poder judicial; e, claro, indicando os atalhos que perfilho para a redução do fenómeno no nosso país.

Ainda moça, nesta cidade, assistia ao germinar da corrupção no seio do Estado de partido-único. Quando, no centralismo democrático e na economia centralizada, dignatários estatais e sua entourage se apropriavam de bens do coletivo e jogavam cartas elevadas já visíveis aos meus olhos juvenis. Era uma corrida a contrarrelógio para ter um pé na Comissão de Confisco e adquirir/apropriar, por uma bagatela, a propriedade imobiliária desta cidade. Para determinados chefes, tudo valia para o enriquecimento indevido, conveniente à assunção do novo status de herdeiros da urbanidade conquistada a sangue no mato. Guerra que ainda subsiste entre uns poucos de vivos. Era prenderem-se entre eles, com altos dirigentes a cumprirem pena na prisão de Brá por desvios de bens públicos. Era o Chefe a distribuir benesses subtraídas ao erário publico aos seus fiéis. Era escamotear esses novos bens em nome de filhos ou outros familiares. Eram testas de ferro nas operações ilícitas. Era ver quem beneficiava e o que se poderia tirar da Cooperação. Era, inclusive, corromper o espírito e as almas das senhoritas, para ver quem ficava com a mais apetecível. Alguns de nós, muito jovens, assistimos ao cultivo da raiz da corrupção do e no Estado, aquela que ainda hoje e cada vez mais nos assola. 

Entretanto, meados dos anos 80, com o Estado na banca rota, chegam em socorro as instituições de Bretton Woods (FMI e Banco Mundial), com o «Reajustamento Estrutural» e a «liberalização económica», melhor denominada de selvagem. Os titulares do poder assumem a autoria do capitalismo na sua vertente neoliberal. Travestem-se, formam e formatam comerciantes da política e seus descendentes que, podendo, necessariamente, viriam a assaltar o poder. Criam empresas de capitais mistos (nacional e estrangeiro), onde figuram nomes de filhos e comadres, com subvenções dadas à cabeça pelo investidor estrangeiro. Vêm as luvas, as % ‘s de comissão e o «sucu di bás». Outros, para sobreviver, para arranjar alguma liquidez, tinha que ser ‘coloca li, coloca lá’, ou então, fazer plantão nas portas das Finanças Públicas munidos de ‘títulos’ forjados. Tudo se privatizou, num adeus ad eterno às maiores empresas públicas. Tudo se tornou alienável, até a moral e a ética. Estava-se a preparar a época seguinte: liberalização politica. Lançava-se o rastilho da guerra civil na cidade, centro privilegiado da corrupção do Estado, com o tráfico de armas para os independentistas de Casamança, fruto de um Relatório Parlamentar que, tipicamente, nunca chegou a conhecer a luz do dia.

A força que o fenómeno da corrupção adquire no Estado e na sociedade acaba por tornar o país aliciante para pessoas e organizações criminosas estrangeiras, atraídas para este porto seguro, onde, efetivamente, com uns trocos, se podia obter o desejado respaldo nas lideranças do Estado. Entre outros dados, a prova evidente é que, nesta cidade, a cocaína teve honras de guarda no Tesouro Público. Tudo numa transversalidade na qual o senso comum, o societário e as próprias instituições estatais, inclusive as que deveriam velar pela aplicação da lei, premeiam o criminoso, sendo este visto como o mais esperto, numa perspetiva de ‘djireça’ e de ‘matchundadi’. Eis o paradigma!

Uma nova esperança despontava das eleições gerais de 2014. Ainda que a Guiné-Bissau se classificasse na 163.ª posição, no índice da Transparência Internacional de 2013, o 12. ° país a nível mundial com mais corrupção…

Porém, logo no início da XIX legislatura, em menos de um ano de governação, o Presidente da República, em discurso oficial, aponta o dedo ao Governo e denuncia alguns dos seus membros como indiciados em corrupção. O Governo riposta com os dólares angolanos, omitidos durante a campanha presidencial; e defende-se invocando perseguição politica: que esses atos, a terem sido cometidos, faziam parte do passado dos governantes. Ninguém se demite ou é demitido. Apesar de se ter anunciado um debate sobre a Justiça, este nunca veio a realizar-se. Entretanto, alguns dos seus membros são chamados pela tutela penal e um outro preso, todos na suspeição frequente de situações de apropriação e utilização de bens e recursos financeiros públicos para seu benefício privado. Para, então, no seio do Governo, surgir quem publicamente defendesse: «Quem não é corrupto?». Pois, nestes termos é verdade: «Anós tudu i kuruptu». Uns porque corrompem, outros porque são corrompidos, e outros ainda porque toleramos este estado de coisas.

Aqui estamos! No vermelho do índice de transparência e da não prestação de contas. Começou pela não apresentação de declaração de rendimentos e do património, por parte de muitos titulares de cargos públicos; vieram as acusações mútuas de desvios do FUNPI; veio o resgate bancário; veio o buraco no Desporto… Como se não soubéssemos da proliferação, no seio da administração, da utilização de documentos fraudulentos em concursos públicos, nas adjudicações diretas, nas obras públicas, pela autoridade tributária, pelas autoridades policiais, na área da saúde, na área da educação, etc.

Ademais, mas não de somenos importância, a problemática dos conflitos de interesse concorre para o potencial da corrupção e da falta de transparência. Há quem, violando sistematicamente as normas das incompatibilidades de funções, apesar de ser titular de um já por si não acumulável cargo político (deputado, membro do governo, conselheiro, etc.), não repugna ser também comerciante. E lá vão todos para a campanha do cucu!

É evidente que sem vontade política a nível institucional no sentido do combate efetivo contra a corrupção e a implementação de uma política de transparência nas atividades públicas, as instituições formalmente criadas e vocacionadas para o efeito (Tribunal de Contas, Inspeção Superior de Contra a Corrupção, o Gabinete de Luta contra a Corrupção e os Delitos Económicos da PGR, a Brigada de Delitos Económicos da PJ, o CENTIF – Célula Nacional de Tratamento de Informações Financeiras da Guiné-Bissau – e a UTC – Unidade Transnacional contra a Criminalidade) continuarão inativas e não passarão de uma mera miragem.

E quanto ao nosso poder judicial? 

A falta de transparência é diagnosticada ciclicamente no interior das instituições judiciárias encarregadas de prevenir e combater a criminalidade. Assustámo-nos quando, pela primeira vez, um Presidente da República denunciou o fenómeno de corrupção nas atividades judiciais. Com estes sintomas, nesta legislatura, face à crise político-institucional, ora hoje um Acórdão e outro amanhã, ora denúncias de viva voz dos próprios magistrados da ‘politização da justiça’ aquando das eleições no STJ. Não nos fazendo de esquecidos que outrora, era o PR que indicava o Presidente do STJ. Extinto o vínculo, em 2008, preferia-se ofertar aos magistrados viaturas novas e de alta cilindrada.

A salvação do poder judicial da sua promiscuidade com o político, da falta de transparência e da corrupção no seu seio, só poderá acontecer através do associativismo e não do corporativismo, numa junção de esforços e de coragem para duas ações, apenas: 

Primeiro, recuperar a credibilidade do sistema de justiça, funcionalizando a transparência junto aos Conselhos Superiores de Magistratura, designadamente através do compromisso que nesse sentido consta da «Carta de Ética dos juízes guineenses», com uma gestão idónea, com a prestação de contas e com a responsabilização. Para isso: auditar o Cofre Geral dos Tribunais e criar mecanismo de controlo interno e externo; apresentar relatórios anuais; realizar inspeções judiciais e publicá-las; fazer uma gestão mais racional dos fracos recursos disponibilizados pelo Estado para o funcionamento da Justiça.

Em segundo, seria pôr freio às apetências do poder político no sistema judicial. Sinal claro seria o normal funcionamento da Magistratura do Ministério Público, retirando-a dessas amarras, extinguindo o vínculo de comando. Para que o MP deixe de ser o parente pobre do sistema e para que a sua chefia tenha legitimidade própria, perfil, competência, duração de mandato e seja idoneamente responsável pela tutela penal. Talvez assim se deixasse de investigar aquilo que se quer, a quem se quer, quando se quer, e com suspeições de uma tendenciosa orientação política. Assim como, outro sinal imediato, consistiria em resgatar o Tribunal de Contas das mãos da mesma subordinação.

Sabemos que a corrupção continuará a assolar o mundo e a pesar acerrimamente no potencial de desenvolvimento de África, mas também há bons exemplos, de países que conseguiram erradicar essa prática ou reduzi-la para níveis insignificantes. A experiência mostra-nos que a transparência é um fator indissociável de uma luta anticorrupção eficaz. A corrupção começou por minar a confiança entre nós, a unidade nacional em torno do progresso, alastrou e conduziu-nos à guerra, aos insaciáveis e fratricidas apetites que tornam o país ingovernável, induziu a dissolução da autoridade do Estado e o descrédito cada vez mais agudo das instituições. É como um cancro que rói a sociedade guineense, um rolo compressor que nos esmaga sob a capa da tolerância cada vez maior a que somos obrigados, para com a normalização de comportamentos manifestamente intoleráveis, que tomaram conta das mais altas instâncias deste país. Quando julgávamos que já tínhamos batido no fundo do buraco, descobrimos sempre que ainda se pode descer mais baixo. Até quando?

quarta-feira, 7 de junho de 2017

7 de junho: Justiça com J grande?

A História de um país faz-se com a SUA História.
Para o ano serão 20 anos...!
Gostaria de poder retirar uma vírgula do escrito no ano passado.

domingo, 4 de junho de 2017

O Quinto Poder


Ontem, dia 3, fui até à Tgb, para um Djumbai em direto, convidada por Mohammed Amadú Djamanca, no seu programa Guigui. Talvez a audiência não tenha sido muito alargada, pois tive de concorrer, no mesmo horário, com Ronaldo, com o seu Real de Madrid: a caminho dos estúdios, reparei em grandes manifestações de alegria, que um golo acabara de despertar.

Numa conversa descontraída, passámos em revista o meu percurso pessoal, com o jornalista a levantar algumas questões bastante pertinentes. Algumas delas fiquei com uma certa sensação de insatisfação por não lhes ter respondido com a profundidade que mereciam, mas o tempo era curto e não se prestava a grandes discursos. Agora, com calma, decidi sentar-me e escrever algumas reflexões, que me afliguem. Há pouco, quando comecei a escrever, era para ser coisa breve, para colocar no Facebook. Mas, pensando melhor, esse talvez não seja o canal mais apropriado para este tipo de pensamentos mais estruturados, tal como decerto não era também este programa de televisão, onde manifestamente não podiam caber. Sinto que muita coisa ficou por dizer…

Djamanca, a certo momento, quis testar o posicionamento assumido com a minha demissão de Presidente do PUSD, referindo-se a mim como «reformada da política», ao que reagi instintivamente, como que para contrariar, sem me dar conta que esse é exatamente o meu estatuto atual. Acabo, pois, de tomar uma decisão. Criarei um novo blog, para servir esta minha vocação para a política, que se tornou parte de mim. Como afirmei ao jornalista, sinto que tenho a minha quota-parte de responsabilidade no futuro do nosso país; sinto que tenho uma imensa dívida para saldar; sinto que pertenço a uma geração privilegiada ao olhar para o estado em que se encontra hoje a educação na Guiné-Bissau. Tivemos uma educação de grande qualidade e representávamos a esperança, traduzida pela expressão «as flores da luta», na execução do «programa maior».

Quando abandonei a presidência do PUSD, esta era para mim uma atitude de desgosto, talvez também, um pouco, de cansaço, perante a interminável decadência do sistema político, perante um poço do qual não via o fundo. Cada vez mais me abominava participar num cenário nacional em contínua degradação, numa peça sem fio condutor, de um elenco cujos atores se movem anarquicamente no palco, parecendo querer, sem dó nem piedade, atirar o povo guineense para a cauda das nações. Foi o que quis significar quando afirmei no programa Guigui que me fartara de dizer «Basta». Pretendia igualmente exprimir uma certa sensação de impotência face à génese de uma crise anunciada, perante os diálogos de surdos com os quais insistem em atrofiar o meu belo, rico e amado país. Tratava-se também, de certa forma, de «lavar as mãos». Porquanto tentei, em 2014, talvez um pouco ingenuamente, oferecer aos guineenses uma alternativa eleitoral, colocando os meus parcos recursos, com evidente prejuízo da minha família, ao serviço de uma aparentemente utópica renovação, apelando à união dos pequenos partidos, sempre castigados pelo método de Hondt, destinado este a manter a hegemonia do(s) maior(es) partido(s), sob o fraco pretexto de, em prol da governabilidade, favorecer maiorias. Efetivamente, o que vimos nessas eleições? Nada que fosse novidade: o PAIGC sabe unir-se para vencer as eleições, alimentando sempre novas esperanças, mas, passada a euforia da vitória, começa a repartição dos despojos, cindindo-se em múltiplas alas, alimentadas pela ganância dos lugares ao sol no governo, concebido como uma galinha dos ovos de ouro, a qual se obstinam em matar, numa ânsia cega de servir seus próprios e individuais interesses, sem respeito pelo próprio Partido, e muito menos pelos interesses nacionais e coletivos. Não vivemos numa res pública, senão apenas numa res privatizada. Na cultura desse Partido, parece ainda não estar assumido que nem todos podem governar. Era esse o sentido da minha resposta ao jornalista do programa Guigui, em face da questão crítica quanto à inclusividade do Governo de Domingos Simões Pereira.

Se aceitei, num primeiro tempo, cheia de esperança, participar empenhadamente e de boa-fé nesse governo, rapidamente me apercebi que, uma vez mais, o PAIGC estava envolvido nos habituais jogos de poder e compromissos partidários, sentindo que a inclusão rapidamente se estava a transformar na minha própria exclusão e numa marginalização do papel da Justiça. Cada vez mais me apercebia que não fora convocada para um papel interventivo, mas antes para simples figurante, ou mesmo pior, para encobrir certas coisas com as quais a idoneidade que sempre me norteou não podia tolerar. Não querendo também parecer ingrata, fui adiando até ao limite do tolerável a tomada de uma atitude. Apresentei o relatório de mais um breve período de governação, que obviamente me deixou insatisfeita, pois, como disse no programa televisivo, isentando-me a mim e a outros de responsabilidades nos falhanços, não é possível deixar obra, se, precisamente quando começamos a tomar os assuntos em mão, nos retiram a confiança política. A liderança do PAIGC, não soube introduzir as mudanças que se impunham para encarnar a esperança nele depositada, continuando o seu Partido, como sempre, na origem dos principais problemas. Ao invés de uma ideologia forte, como aquela que Cabral soube criar e alimentar, conduzindo o nosso país à independência, e ajudando pelo caminho o povo português a libertar-se do sistema colonial, esse Partido nada mais parecia poder oferecer para além da já gasta luta de galos pelo poleiro, em manifesto prejuízo de todo um povo.

Solicitou-me o jornalista Djamanca que analisasse sucintamente o Acordo de Conacri e os precedentes que lhe deram origem. Tentei resumir brevemente, mas gostaria de o fazer mais pormenorizadamente, para melhor compreensão. Lembrando que perante a entrada em rota de colisão dos titulares dos órgãos de soberania, nomeadamente o Presidente da República e o Chefe do Governo, José Mário Vaz e Domingos Simões Pereira, se criara uma primeira situação de impasse, com expressão em clivagens internas, por essa altura ainda subterrâneas, no seio do Partido vencedor das eleições, a qual foi rapidamente resolvida (Governo caricatamente apelidado de 48 horas) pela intervenção atempada do poder judicial, ao ordenar a devolução do Governo ao PAIGC. No entanto, a emergência dessas divergências ‘wandan’ (à luz do dia), no seio da ANP, conduziu à inviabilização dos instrumentos de governação desse novo executivo liderado por Carlos Correia, nomeadamente o seu Programa e Orçamento, implicando a sua queda, e dando origem ao caso dos «15» deputados dissidentes, que o PAIGC expulsou e quis substituir no Parlamento. Tendo-se uma vez mais recorrido a uma arbitragem do poder judicial, o Plenário do Supremo Tribunal considerou ilegal a perda de mandato decidida pela Comissão Permanente da ANP, que para tal não tinha competências, mas tão só e apenas o respetivo Plenário. Desde aí, a crise transferiu-se para a ANP, que após sucessivos adiamentos, nunca mais chegou a reunir o seu Plenário, único soberano, o que motivaria a queda de um segundo Governo de Baciro Djá, desta-feita sem que o Supremo Tribunal se tivesse pronunciado. Ou seja, esgotados todos os expedientes para obter uma solução consensual interna, baseada na Constituição da República, nos quatro poderes já elencados (PR, ANP, Governo e o Judicial), recorreu-se a um «quinto» poder, como lhe chamei na entrevista, o da CEDEAO, que lhe é exterior e alheio. 

Concomitantemente, os atores políticos guineenses, incapazes de se entenderem, tomaram a iniciativa de transferir parcela da soberania nacional para o exterior, em flagrante violação da Constituição da República, tal como defendi publicamente na altura, e não fui obviamente a única. O assim chamado Acordo de Conacri deveria supostamente resolver definitivamente o impasse que se criara. Todavia, como disse neste Djumbai, quando o respetivo texto foi publicado, fomos vários os analistas e comentadores a renovar grande ceticismo quanto ao seu alcance, pelas suas lacunas, tal como a sequência dos acontecimentos viria a demonstrar. E não tardou mais que um dia, para que a sua inconsistência se manifestasse e se multiplicassem as divergências quanto à sua interpretação, dando lugar a leituras desencontradas. Segundo constou, o PAIGC, que durante a ronda negocial de Conacri insistira no nome de Carlos Correia, pela voz do seu presidente, Domingos Simões Pereira, e no de Mário Cabral, pela voz de Cipriano Cassamá em representação da ANP (nem um nem outro pertencentes à lista dos três nomes propostos pelo Presidente), ventilou que o escolhido fora Augusto Olivais. Ora, o PRS, em reação imediata, pela voz do seu representante, Florentino Mendes Pereira, garantia-nos, pelo seu lado, à chegada a Bissau, vindo de Conacri, que nunca se aflorara tal hipótese na mesa de negociações, declarando que o PRS e o chamado «grupo dos 15», a quem aliás o Acordo reconhecia identidade como sublinhei no programa Guigui, aceitariam qualquer dos três nomes propostos (Olivais, Fadiá e Sissoco), confiando a decisão ao Presidente José Mário Vaz.

Efetivamente, o PRS, o qual pode ser legitimamente acusado de oportunismo, mormente nas recorrentes situações atípicas da nossa democracia, de uma desenfreada caça às pastas, parece ter revelado no atual contexto, uma certa inteligência e maturidade, que lhe facilitasse a lavagem da cara, no caso, mais que previsível, de a coisa correr mal, evitando envolver-se ativamente nas decisões, deixando esse ónus a José Mário Vaz e aos «15», chegando mesmo a defender que não se opunha à indicação de uma figura independente e de fora das quezílias políticas em apreço. Desde aí, o novo ponto de discórdia, em torno do qual passariam a girar os acontecimentos, seria qual o nome escolhido em Conacri. Acontece que, a nomeação de Umaro Sissoco, como bem sabemos, desagradou, para além do PAIGC, ao mediador, com o recém-nomeado Primeiro-Ministro a agravar a situação, ao acusar, de forma desprestigiante e muito pouco diplomática, o Presidente da União Africana, Alpha Condé, de mentiroso. Toda esta situação poderia ter sido evitada, se a letra do Acordo assinado pelos representantes dos vários atores não fosse tão vaga e imprecisa, abrindo brechas perante a flagrante ausência de consenso. Deveria ter sido um pressuposto a exigência de mecanismos claros para induzir uma cabal execução do Acordo, atendendo à própria gravidade dos precedentes.

Permito-me, neste caso, falar com inteira propriedade, sem receio de ser acusada de parcialidade, pois fui das pessoas que marcaram bem, inclusive em declarações à televisão nacional, a oposição à «solução» encontrada no âmbito deste Acordo. Não obstante, não posso deixar de anotar alguma imperícia por parte da nossa organização, a CEDEAO, na tomada do processo guineense em mãos. No meu parecer, o problema foi claramente subestimado, bem como a densidade da crise política guineense, parecendo-se acreditar que a simples boa vontade ou declarações de boas intenções, associada ao peso da organização sub-regional seriam o suficiente para forçar o entendimento. A superficialidade da abordagem induziu a organização em engano. Por isso, muitos defendem hoje que é a própria credibilidade da CEDEAO que está em causa, perante os passos em falso já dados. Não há dúvida que a CEDEAO teve a infelicidade de se deixar atolar no nosso lamaçal. Passámos pela vergonha de ouvir o Chefe de Estado do Gana se nos dirigir em termos pouco próprios, mesmo que com eventuais e possíveis fundamentos. Ai, Cabral! Tu, que Mandela considerou o maior dos líderes africanos, se pudesses e te fosse consentido cá voltar para ver a fraca figura que oferecemos ao mundo! ..que fizeram da tua pátria? Hoje, dia 4 de junho de 2017, discute-se, na Conferência de Chefes de Estado da CEDEAO, a situação de crise institucional vigente na Guiné-Bissau, nosso país, bem como a possibilidade de aplicação de sanções.

O meu abandono da vida partidária não significava, como julgo que já deixei bem claro, que abandonasse a política. Mesmo como «independente» e simples cidadã mantenho o meu empenho e a minha disponibilidade para participar de um verdadeiro debate positivo em torno do futuro do meu país. Esse abandono, mais não exprimia que a minha REVOLTA, a minha RAIVA face ao evoluir, ou mais propriamente involuir, da situação, que, como temia, continuou a degradar-se e hoje atingiu o seu paroxismo. Por isso entendo útil partilhar a minha opinião, como jurista e mulher guineense que sou. Para além dos erros cometidos aquando da assinatura do Acordo de Conacri, tanto da parte guineense, como por parte da CEDEAO, julgo que a monitorização empreendida, aliás prevista no próprio Acordo, também não foi muito feliz. Dando provas de impaciência com a manutenção do impasse, a Comunidade Económica enviou a Bissau, nos passados dias 23 e 24 de abril, uma Missão Ministerial de Alto Nível, que emitiu um Comunicado Final. Esse comunicado acabaria por ser seguido por um outro, do Conselho de Segurança da ONU, dando conta do acompanhamento da situação. Contudo, para além da falta de argumentação (que afeta sem dúvida gravemente a sua legitimidade) quanto às razões pelas quais entendem que o Acordo visado não foi cumprido, enferma de graves vícios de forma. Um deles ocorre na alínea h do ponto 9, na qual aparentemente a Missão reconhece o Governo que supostamente pretende substituir. Outro ponto que se revestia de pouca clareza, tendo-se prestado às divergentes leituras enviesadas e parciais a que os principais atores já nos habituaram, é a ameaça da recomendação, à Autoridade dos Chefes de Estado, cuja Conferência hoje decorre, para aplicação de sanções direcionadas aos indivíduos responsáveis pela obstaculização do Acordo no âmbito da CEDEAO, estipulando mesmo um prazo de trinta dias, não coincidente com a data da respetiva Conferência. Quando se fazem ameaças desta natureza, estas devem ser cumpridas, de alguma forma, no prazo definido, sob pena de descrédito. Todavia, como assistimos, apesar das fortes expectativas alimentadas por alguns em contagens decrescentes, nada aconteceu na data marcada. Nem poderia acontecer, pois o Tratado Revisto da CEDEAO, que dedica o seu art.º 77.º à aplicação de sanções, não prevê esse tipo de sanções, mas apenas sanções coletivas e genéricas ao país. Neste caso, a legislação sub-regional está bastante mais atrasada que a da ONU, que tem evoluído, neste século, precisamente no sentido de sanções cada vez mais direcionadas, após reconhecer que muitas sanções coletivas, tomadas no passado, acabaram não só por prejudicar as populações, mas mesmo por ter um efeito pernicioso. Um exemplo dessa evolução aconteceu ontem mesmo, com a aplicação de sanções a 15 indivíduos e 2 organizações empresariais norte-coreanas, no âmbito do programa de teste e lançamento de mísseis balísticos desse país. Portanto, em termos de Direito, a CEDEAO poderá apenas recomendar ao Conselho de Segurança a aprovação desse género de sanções, transpondo em seguida uma eventual decisão para o âmbito sub-regional dos seus Estados-Membros, como o fez a União Europeia em relação aos militares guineenses envolvidos no 12 de abril de 2012. Enquanto nada garante que subsista um consenso mínimo de dois terços para a tomada de qualquer decisão nesta conferência de Chefes de Estado, os atores guineenses continuam no puxa-puxa, antecipando cada parte a aplicação de sanções à outra parte. Se a CEDEAO não conseguir resolver a crise guineense, não é displicente imaginar que, por um efeito contrário de ressalto, se possa deixar contaminar pela grande confusão.

Mas, como a esperança é a última a morrer, mesmo perante o céu tingido e as nuvens que ensombram o nosso destino coletivo, não poderia terminar sem voltar à primeira questão que me fez Djamanca, a quem agradeço por toda esta reflexão que em mim despertou. Abordou-me de imediato com uma pergunta à qual talvez tenha parecido aos telespectadores que me esquivei. Porém, seria impossível responder a uma questão dessa amplitude sem uma bateria de perguntas que tivessem preparado o campo. Perguntou-me ele que solução encarava para o país, atendendo à entristecedora situação em que nos encontramos. Num esboço rápido de resposta, diria que só uma REVOLUÇÃO, uma RUTURA radical com este sistema político, uma REFUNDAÇÃO total do Estado, voltando à estaca zero, um desenho ex-novo da nossa arquitetura constitucional, poderia encarrilar a Guiné-Bissau, na senda do séc. XXI. Como defendi no programa, se em 2001, já se equacionava a necessidade de uma Nova Constituinte, face a uma Constituição essencialmente decalcada da portuguesa de 1976, hoje, por maioria de razões, isso tornou-se num imperativo inadiável. Naturalmente que, considerando as nossas especificidades, tais como o poder tradicional, mas também os erros cometidos, os vícios detetados no passado, no sentido de gerar uma nova orgânica que convenha à nossa identidade, às nossas idiossincrasias, e que sirva de motor para uma renovação e depuração das mentalidades. Ademais, num sentido mais restrito do atual contexto político, ocorre-me que o Presidente José Mário Vaz poderia cumprir com as exigências da CEDEAO, demitindo o atual Governo e, para colocar uma pedra sobre o ‘djumblumani na baliza di bás’ (grave discórdia) que criámos e que não pertence senão a nós próprios resolver, optar por uma solução original, que poderia consistir, à imagem do Acordo de Conacri, na escolha de três nomes independentes da sua confiança para a Chefia do Governo, promovendo um Plenário Parlamentar sob a sua égide, ao qual seria submetida essa escolha, ficando assim tacitamente garantida a aprovação dos respetivos instrumentos de governação, dos quais carece para cumprir cabalmente as suas funções. Se pudemos «maltratar» a Constituição a favor de expedientes externos, há espaço e precedente para um contributo positivo que empodere o país e recupere a soberania ingloriamente desperdiçada, poupando a CEDEAO aos riscos e perigos de se envolver em profundidade em soluções paliativas e inconsequentes.